02/08/2013

A PORTEIRA CÁ DO PRÉDIO

Quando estou em Moscovo a ultimar os preparativos para a viagem do Transiberiano, costumo ficar num hostel não-muito-longe de Arbat, uma das zonas mais animadas da cidade.

O hostel chama-se Oh so Indie! e tem entrada nas traseiras de um bloco de apartamentos, entre jardins e carros estacionados. Só o encontra quem já sabe o caminho, ou quem fez reserva e recebeu indicações pela internet. É mais ou menos secreto - como muitos dos hostels em Moscovo - e na rua principal só há muito pouco tempo apareceu uma referência... mas muito pouco explícita ;)

Uma vez nas traseiras, toca-se a uma campainha para que a porteira abra o portão, depois repete-se o procedimento para a porta do prédio. Uma vez dentro do edifício, é só subir três andares por uma escada que parece tirada de um filme de terror, e depois encontra-se uma porta aberta - está sempre aberta! - que dá para uma cozinha... bem-vindos ao "Oh so Indie!".

Mas recuemos um pouco. Não no tempo, mas no espaço. Porque não é dentro do hostel, no terceiro andar, que se encontra o tema deste post. Três andares abaixo, portanto: recuemos três andares. Sentada numa cadeira de rodinhas logo no primeiro patamar das escadas, fardada como lhe disseram que tinha de ser, os cabelos loiros agarrados num cuidado rabo-de-cavalo, um olhar que só muito a custo se levanta quando dou os bons-dias.

A porteira do meu prédio é tão típica quanto uma daquelas bonecas russas que se abrem para revelar outras mais pequenas. Chamam-se Matrioskas - e é esse o nome pelo qual vou chamar a porteira, neste post, à falta de um nome impresso numa plaquinha de identificação ao peito.

A porteira Matrioska tem tiques de guarda da Gestapo: parece a Helga do Allô Allô!, mas desprovida de sex appeal. E como a maior parte das russas com mais de quarenta, deve pesar quase o dobro da idade. É um fenómeno difícil de explicar, e que já foi amplamente discutido com um amigo indiano que é "especialista" na matéria: como é que neste país as mulheres com menos de trinta são lindíssimas, com corpos esculturais, sempre bem arranjadas... e depois dos quarenta... mas enfim, concentremo-nos na porteira. Da qual não tenho fotos, pode-se imaginar porquê.

Tal como com a Helga do Allô Allô!, existe um lado perverso nesta Matrioska do Oh so Indie!. Tal como com as bonecas russas: outras porteiras se revelam, quando "sai da casca".

Ontem, por exemplo: quando cheguei do aeroporto, "apanhei-a" a ouvir reggae num rádio a pilhas. Acreditem no que vos digo: uma russa quarentona fardada, a ouvir reggae num vão de escadas... não é muito comum. Estaria a recordar momentos escaldantes com o ex-namorado jamaicano?

Mais tarde, quando desci as escadas para ir à embaixada da Mongólia, a porteira Matrioshka não estava no seu lugar. Mas reparei que havia um pequeno livro pousado no parapeito da janela, junto a um dossier onde estavam registadas as entradas e saídas de pessoas no prédio. Espreitei, cheio de curiosidade em saber o que lê a senhora... e era um bonito romance da colecção Harlequim, com a capa em tons de roxo, um casal abraçado, ela muito loira e com uma lágrima no olho, ele moreno com cabelo à Bee Gees e orgulhoso da farta bidogaça. Nem mais.

Hoje de manhã, só para confundir: vinha eu a descer as escadas e dou de caras com a Matrioska, sentada como de costume, mas concentradíssima num ipad que segurava nas mãos. Estaria no skype a falar com o jamaicano? Ou a assistir a uma telenovela? Nada disso. Aproximei-me em silêncio... e surpresa das surpresas, estava entretida com um jogo de corridas de carros.

É isto que eu gosto nas pessoas: é das contradições. É das diferenças, de todos os pormenores e dos inesperados que as tornam tão ricas. Tão interessantes. Do fanático de futebol que conhece de cor a obra de Chopin. Da estrela pop que veste fatos brilhantes à noite e que vai pescar de manhã com os velhotes do bairro. Do agricultor que devora tudo relacionado com tramas políticas internacionais e registos de actividade extraterrestre. Do homem mais procurado do mundo, que só queria um bocadinho de paz e fazer o Transiberiano comigo. ;)

As pessoas - tal como as cidades - são feitas de tantos Eus, de tantos bairros, contrastes de cores, jogos de sombra e luz, ângulos rectos e suaves linhas. Cheiros e sabores, tiques e hábitos, superstições, fantasias, certezas.

E é por isso que gosto de Moscovo. Porque tem no skyline cúpulas douradas, chaminés industriais e arranha-céus espelhados. Porque no parque de estacionamento vi hoje um Lamborghini côr-de-laranja com um autocolante do Che Guevara... e mesmo ao lado estava um velho Lada castanho cheio de coisas penduradas no espelho retrovisor. Porque além das habituais velhotas com penteados-que-não-lembra-ao-Diabo e dos polícias de chapéus-enormes-à-teledisco-da-Nikita com sacos de papel do McDonalds na mão; hoje passou por mim uma miúda em patins em linha, de calções curtíssimos e t-shirt da Lady Gaga, a mascar pastilha e a ouvir phones aos altos berros. Pouco atrás vinha um miúdo com uns AllStar-bandeira-dos-EUA, cigarro na mão direita e lata de vodka na esquerda, um cheiro insuportável a sovaco, sorriu sabe-se lá porquê e tinha uma dourada cremalheira. Há ouro dentro das bocas, na Rússia. E no ar há música. Como se esta cidade fosse um filme, eu o actor principal, e a banda sonora... que medo. É o "Mamma Mia" e o "I Saw The Sign", é música latina e Scorpions, e de vez em quando uma orquestra para lembrar os velhos tempos.

Mas já estou a divagar. Este post era sobre a porteira, comecei com o prédio e já vou na cidade. Por agora, fico-me por aqui.

2 comentários:

Clara Amorim disse...

Pois eu gosto de posts ecléticos...!!!

Nuno Caldeira disse...

Temos o Jorge de volta!

Sou só eu, ou há mesmo algo de mais especial quando falas do mundo "à direita" do Atlântico? Nada contra a América Latina, mas...

Uma óptima viagem, cheia de pessoas esquisitas, bonitas, feias e assim-assim! :)