O hostel chama-se Oh so Indie! e tem
entrada nas traseiras de um bloco de apartamentos, entre jardins e carros
estacionados. Só o encontra quem já sabe o caminho, ou quem fez reserva e
recebeu indicações pela internet. É mais ou menos secreto - como muitos dos hostels em Moscovo - e na rua principal só há muito pouco tempo apareceu uma referência... mas muito pouco explícita ;)
Uma vez nas traseiras, toca-se a uma campainha para que a porteira abra o portão,
depois repete-se o procedimento para a porta do prédio. Uma vez dentro do edifício, é só subir três andares
por uma escada que parece tirada de um filme de terror, e depois encontra-se uma porta
aberta - está sempre aberta! - que dá para uma cozinha... bem-vindos ao
"Oh so Indie!".
Mas recuemos um pouco. Não no tempo, mas no espaço. Porque não é dentro do hostel, no terceiro andar, que se
encontra o tema deste post. Três
andares abaixo, portanto: recuemos três andares. Sentada numa cadeira de
rodinhas logo no primeiro patamar das escadas, fardada como lhe disseram que
tinha de ser, os cabelos loiros agarrados num cuidado rabo-de-cavalo, um olhar que só
muito a custo se levanta quando dou os bons-dias.
A porteira do meu prédio é tão típica quanto uma daquelas bonecas
russas que se abrem para revelar outras mais pequenas. Chamam-se Matrioskas - e
é esse o nome pelo qual vou chamar a porteira, neste post, à falta de um nome impresso numa plaquinha de identificação
ao peito.
A porteira Matrioska tem tiques de guarda da Gestapo: parece
a Helga do Allô Allô!, mas desprovida de sex
appeal. E como a maior parte das russas com mais de quarenta, deve pesar
quase o dobro da idade. É um fenómeno difícil de explicar, e que já foi
amplamente discutido com um amigo indiano que é "especialista" na
matéria: como é que neste país as mulheres com menos de trinta são lindíssimas,
com corpos esculturais, sempre bem arranjadas... e depois dos quarenta... mas
enfim, concentremo-nos na porteira. Da qual não tenho fotos, pode-se imaginar porquê.
Tal como com a Helga do Allô Allô!, existe um lado perverso
nesta Matrioska do Oh so Indie!. Tal como com as bonecas russas: outras
porteiras se revelam, quando "sai da casca".
Ontem, por exemplo: quando cheguei do aeroporto,
"apanhei-a" a ouvir reggae
num rádio a pilhas. Acreditem no que vos digo: uma russa quarentona fardada, a
ouvir reggae num vão de escadas...
não é muito comum. Estaria a recordar momentos escaldantes com o ex-namorado
jamaicano?
Mais tarde, quando desci as escadas para ir à embaixada da
Mongólia, a porteira Matrioshka não estava no seu lugar. Mas reparei que havia um pequeno
livro pousado no parapeito da janela, junto a um dossier onde estavam registadas as entradas e saídas de pessoas no
prédio. Espreitei, cheio de curiosidade em saber o que lê a senhora... e era um bonito romance da colecção Harlequim, com a capa em tons de roxo, um casal abraçado, ela muito loira e com uma lágrima no olho, ele moreno com cabelo à Bee Gees e orgulhoso da farta bidogaça. Nem mais.
Hoje de manhã, só para confundir: vinha eu a descer as
escadas e dou de caras com a Matrioska, sentada como de costume, mas
concentradíssima num ipad que
segurava nas mãos. Estaria no skype a
falar com o jamaicano? Ou a assistir a uma telenovela? Nada disso. Aproximei-me
em silêncio... e surpresa das surpresas, estava entretida com um jogo de
corridas de carros.
É isto que eu gosto nas pessoas: é das contradições. É das
diferenças, de todos os pormenores e dos inesperados que as tornam tão ricas.
Tão interessantes. Do fanático de futebol que conhece de cor a obra de Chopin.
Da estrela pop que veste fatos brilhantes à noite e que vai pescar de manhã com
os velhotes do bairro. Do agricultor que devora tudo relacionado com tramas
políticas internacionais e registos de actividade extraterrestre. Do homem mais procurado do mundo, que só queria um bocadinho de paz e fazer o Transiberiano comigo. ;)
As pessoas - tal
como as cidades - são feitas de tantos Eus, de tantos bairros, contrastes de cores,
jogos de sombra e luz, ângulos rectos e suaves linhas. Cheiros e sabores,
tiques e hábitos, superstições, fantasias, certezas.
E é por isso que gosto de Moscovo. Porque tem no skyline cúpulas douradas, chaminés
industriais e arranha-céus espelhados. Porque no parque de estacionamento vi
hoje um Lamborghini côr-de-laranja com um autocolante do Che Guevara... e mesmo
ao lado estava um velho Lada castanho cheio de coisas penduradas no espelho
retrovisor. Porque além das habituais velhotas com penteados-que-não-lembra-ao-Diabo
e dos polícias de chapéus-enormes-à-teledisco-da-Nikita com sacos de papel do McDonalds na mão; hoje passou por mim
uma miúda em patins em linha, de calções curtíssimos e t-shirt da Lady Gaga, a
mascar pastilha e a ouvir phones aos altos berros. Pouco atrás vinha um miúdo com uns AllStar-bandeira-dos-EUA,
cigarro na mão direita e lata de vodka na esquerda, um cheiro insuportável a
sovaco, sorriu sabe-se lá porquê e tinha uma dourada cremalheira. Há ouro dentro das bocas, na Rússia. E no ar há música. Como se esta cidade fosse um filme, eu o actor
principal, e a banda sonora... que medo. É o "Mamma Mia" e o "I
Saw The Sign", é música latina e Scorpions, e de vez em quando uma
orquestra para lembrar os velhos tempos.
Mas já estou a divagar. Este post era sobre a porteira, comecei com o prédio e já vou na cidade.
Por agora, fico-me por aqui.
2 comentários:
Pois eu gosto de posts ecléticos...!!!
Temos o Jorge de volta!
Sou só eu, ou há mesmo algo de mais especial quando falas do mundo "à direita" do Atlântico? Nada contra a América Latina, mas...
Uma óptima viagem, cheia de pessoas esquisitas, bonitas, feias e assim-assim! :)
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