Nove muçulmanos, vários interrogatórios, uma tortura com insectos e uma
fuga ao fim de vinte e quatro horas. A crónica que se segue contém descrições
que podem chocar os leitores mais impressionáveis.
Parte 1:
Interrogatório e rapto
Depois da Agradável Surpresa que foi Murshidabad, comecei a voltar "para baixo" no mapa. O objectivo final era chegar a Bhubaneswar - onde a minha mota ficará guardada para uma segunda volta, em 2016 -, mas como isso implicava alguns dias de estrada, em vez de regressar pelo mesmo caminho fiz um desvio, de maneira a visitar Shanti Niketan (onde fica a icónica universidade fundada pelo Nobel da Literatura indiano, Rabindranath Tagore).
Interrogatório e rapto
Depois da Agradável Surpresa que foi Murshidabad, comecei a voltar "para baixo" no mapa. O objectivo final era chegar a Bhubaneswar - onde a minha mota ficará guardada para uma segunda volta, em 2016 -, mas como isso implicava alguns dias de estrada, em vez de regressar pelo mesmo caminho fiz um desvio, de maneira a visitar Shanti Niketan (onde fica a icónica universidade fundada pelo Nobel da Literatura indiano, Rabindranath Tagore).
Apesar de nem estar muito mau tempo
no momento em que saí de Murshidabad, ao longo do da manhã as condições foram
piorando. Primeiro vento e muito pó, depois aguaceiros daqueles que não chegam
a ser chuva, mas que deixam a mota, o piso e eu próprio encharcados - e isto por
estradas nem sempre fantásticas, algumas recheadas de buracos e trânsito,
outras com obras e lama. De vez em quando uma ou outra mais pitoresca... mas
admito que foi uma manhã complicada de gerir. Encostei várias vezes para me
abrigar da chuva, avancei sempre devagar por questões de segurança - e quando
perto da hora de almoço fiz nova paragem para me abrigar, parecia que estava em
cima da mota há trezentas e quarenta e uma horas sem parar. Sentei-me num banco
corrido de madeira e pedi um chai ao
velhote sentado a amassar o pão. Ele sugeriu-me umas chamuças, eu aceitei -
estavam deliciosas. E enquanto esperava que a chuva passasse, reuniu-se a multidão
do costume à minha volta. Sorri, estafado, não estava para grandes conversas
mas quem sou eu para estar ou não estar para grandes conversas:
Coming from? Your good name? Job? How
old? Are you married? Why? First time in India? Are you like India? Your
country money is? Are you Islam (por causa da tatuagem)? Hindu? Christian?
Iphone cost price in your country? Indian visa how much cost? How many rupees
monthy income?
E a chuva, que não há meio de
parar.
Findo o primeiro interrogatório,
dois rapazes insistiram que os acompanhasse até à loja do outro lado do
cruzamento. A mota ficou parada à frente do boteco, eu atravessei e fui
apresentado ao tio e ao irmão do avô, ao cunhado da vizinha da prima em segundo
grau, mais ao sobrinho-neto da sogra do irmão do melhor amigo.
A sensação não me é nova, é
verdade. Mas não deixa de ser caricata. E tem tanto de cansativa como de cómica,
admito que é preciso algum poder de encaixe e muita paciência. E, no entanto, é
uma porta aberta a vários filmes - ou pelo menos tem sido, pela minha
experiência.
E desta vez não foi excepção.
Estava há mais de uma hora em
conversa com este-e-aquele, a responder aos mesmos interrogatórios com algumas
variáveis, conforme os interesses e o inglês de cada um. Ah, pois: o inglês. Não
me posso esquecer de sublinhar este facto: nesta aldeia à volta de um
cruzamento, como nas outras aldeias ao longo da estrada e da história desta
viagem, inglês é coisa rara de se falar. E, no entanto, lá nos entendemos. Mas,
como dizia: mais de uma hora a ser passeado, apresentado e entrevistado, e eis
que a chuva parecia estar finalmente a acalmar. Na verdade não me apetecia nada
mandar-me à estrada outra vez, estava estafado - mas tinha de ser. E relembrei
os meus novos amigos que estava ali só de passagem, e que daqui a pouco tinha
de me ir embora.
Nada disso!, anunciaram enquanto me
agarravam pelo braço. Ficas aqui connosco, há um lodge a três quilómetros, precisas de descansar.
Não resisti muito a este rapto,
confesso. Fui uma vítima fácil. Mas a ideia de um quarto e cama... não,
desculpem-me!, estou a trocar a ordem das coisas: a ideia de um duche. Um duche!
Só a ideia de um duche era suficiente para me convencer.
O mais curioso é que a partir do
momento em que aceitei a ideia do "rapto", de ficar ali em vez de
continuar, fiquei logo muito mais relaxado. Só de saber que não tinha de levar
outra vez com buracos e lama e tubos de escape. E o duche! Daqui a nada ia
tomar banho!
Mais um chá com este, um cigarro
com aquele, já almoçaste? Não?, então vens comer a nossa casa. Lembrei-lhes que
estava a precisar desesperadamente de um banho, sugeri irmos ao lodge primeiro e depois a casa deles,
mas quem sou eu para sugerir seja o que for. Afinal: é um rapto ou não é um
rapto?
Fomos para casa de um deles, portanto,
onde por milagre sabe-se lá de que santo já me esperavam a mulher, a mãe e a
avó. Fui levado para o jardim, onde havia um poço - e enquanto uma delas dava
"à bomba" eu lavei rosto, pescoço, braços e mãos. Depois descalcei-me
e entrei, instalaram-me num dos quartos e acenderam a televisão. Eu fiquei
sentado na borda da cama, descalço e a olhar para o infinito, ora sorrindo, ora
fingindo que estava interessado nos telediscos que passavam, enquanto durante cinco
minutos ficou tudo em silêncio a olhar para mim. A ver o estrangeiro. Trocaram
algumas impressões, não faço ideia nem nunca saberei o que disseram.
Almocei com o primo do dono da
casa, que era o único que comia - todos os outros estavam em jejum, por causa
do Ramadão. As mulheres nem entraram no quarto, enquanto comíamos. Depois
fumámos um cigarro no terraço, trocámos histórias, pediram para ver as
fotografias da minha família. Mostrei e entretanto voltaram a aparecer as
mulheres da casa, que ficaram deliciadas.
Resumindo as voltas e as conversas:
pouco depois estava a ser convidado para ficar. Nem foi bem convidado, foi
mais: telefonámos para o lodge e disseram-nos que estão cheios, todos os
quartos reservados. Por isso ficas aqui. E fiquei, que remédio. Estacionei a
mota no jardim e levei a mochila para o quarto, tomei um banho de balde (lá se
foi o tão sonhado duche quente) e fiz uma sesta com os homens da casa. A meio
da tarde fomos passear com os amigos, fui apresentado à metade da aldeia que
faltava conhecer, bebi mais uns chais, vimos o pôr-do-sol. Depois começou a
escurecer e voltámos para casa, subimos ao terraço e estenderam uma esteira no
chão, onde nos deitámo-nos à conversa, com a lua a testemunhar. Um enorme halo
à volta, mais Júpiter e Vénus em sensual aproximação. O céu estava carregado de
estrelas. E à nossa volta voavam dezenas de pirilampos. Parecia uma cena de um
filme de Bollywood, mas sem o drama e as coreografias do costume.
A
segunda parte vem já a seguir.
3 comentários:
Muito bom, fantástico mesmo :)
Temos história para um livro...! 😉
Delicioso!!
Enviar um comentário