02/07/2015

(MAIS OU MENOS) RAPTADO!

Parte 2:
Tortura e fuga

Interessante reparar como certas palavras ganharam determinadas conotações, ao longo dos tempos. No início do último post juntei na mesma frase as palavras "muçulmano", "rapto" e "interrogatório"... e o que noutro contexto podia ser uma má notícia, afinal era uma história que fala de hospitalidadee sentimentos positivos.

Os nove muçulmanos que referi são todos membros da mesma família: dois irmãos e a mulher de um deles, mais o pai e a mãe, uma tia e o primo, o avô e a avó. Nove pessoas que me receberam com uma curiosidade enorme, um entusiasmo genuíno, uma entrega pura. E depois de vários interrogatórios acerca do meu percurso de vida, a minha família e a minha viagem... "raptaram-me", portanto. Fiquei a dormir em casa deles.

Jantámos - os homens num quarto, as mulheres e as crianças noutro - e depois ficámos a ver um jogo qualquer da Copa América, pois um dos miúdos adorava futebol e sabia tudo sobre as equipas espanholas, a Liga dos Campeões e as Selecções Nacionais. Impressionante.

Ainda houve tempo para brilhar com o Tiger Balm: a mãe tinha-se queixado de dores nos joelhos e eu dei-lhe a experimentar o bálsamo milagroso. Foi tal o entusiasmo que toda a família experimentou - e não resisti em oferecer-lhes aquilo.

Quando nos deitámos, três na mesma cama enorme, o quarto estava infestado de insectos. Tinham entrado pelas janelas abertas: mosquitos e pirilampos, pequenos escaravelhos e dezenas de outros bichos que não reconheço, não faço ideia o que eram - e não quero saber. Confesso que ao início estava sempre a sacudir-me com nojo, os bichos sempre a pousar, mas era impossível não me habituar. Ou seja: quando finalmente apagámos a luz, já estava um bocadinho mais à vontade. Com a ventoinha ligada chateavam menos... mas confesso que acabou por ser uma tortura, toda a noite a acordar e a adormecer, sentindo bichos por todo o lado, braços e pernas, pescoço e pés, até nos ouvidos e no nariz. Às vezes abria os olhos e via no escuro umas luzes, pareciam estrelas cadentes. Mas eram apenas os pirilampos que, ao ser empurrados pelo ar da ventoinha, eram projectados para os lados. E depois voltavam ao centro do quarto para repetir a brincadeira.

Muito bonito de descrever, aparentemente muito fotogénico, se fosse possível de fotografar... mas uma verdadeira tortura. Não tinha lençol nem cobertor, fui buscar uns longhis birmaneses à mochila para ver se me tapava um bocadinho. De manhã acordei com umas olheiras até aos pés, mas tive de fazer cara bonita e sorrir para toda a gente. O estrangeiro resistiu.

Depois do pequeno-almoço passaram a manhã a "empatar-me", basicamente. Prometiam vir comigo a Shanti Niketam, o lugar onde fica a universidade de Tagore. Aparentemente não estávamos assim tão longe, uns 30 ou 40 km. Mas iam sempre adiando a partida, havia sempre um programa mais urgente, algo de última hora que não interessava para nada... e à medida que o passeio era adiado para mais tarde, eu ficava mais impaciente. Já só pensava em prosseguir viagem. O tempo nem estava mau: ou seja, não estava a chover. E quando de repente começaram a falar de uns problemas e umas situações, mais vale irmos só amanhã, hoje ficamos por aqui que é melhor...

...eu já sei onde Isto vai parar.

E meus senhores: Isto não vai acontecer.

Comecei a inventar umas desculpas, que tinha de estar não-sei-onde, não-sei-quando. Mais problemas da mota e a chuva que vai-e-vem. A sério: gostei da experiência, da partilha de histórias e das gargalhadas com os amigos que fiz, da família que foi muito hospitaleira, da comida. Comi que nem um príncipe. Mas não me estava nada a apetecer repetir a ronda de visitas e fretes sociais, e vá-se lá perceber porquê mas muito sinceramente não tinha especial vontade de passar mais a noite com os insectos.

Almoçámos. E fui-me embora.

A bem da preocupação deles, disse-lhes que ia para Kharagpur (a sul). Mas, na verdade, dez quilómetros depois de seguir na estrada principal, meti-me por um caminho secundário para leste e segui o plano que tinha traçado ao início, no mapa: ia para Shanti Niketan.

2 comentários:

lv disse...

A bicharada da noite é que não foi muito hospitaleira, fez-te falta uma capa de eredon para te enfiares lá dentro :) :) :)

Clara Amorim disse...

Ufa, ufa...! 😊