Pois saibam que contam as avózinhas da Pérsia e do Curdistão que em tempos
viveu, numa aldeia turca perto do Mediterrâneo, uma criatura chamada Shahmaran,
meio-mulher-meio-serpente, que era sábia e bondosa, e que diziam ser a rainha
das cobras.
Dizem que quando Shahraman morre, o seu espirito passa para
uma das suas filhas, assim se perpetuando no tempo e nas histórias, acumulando
conhecimento e experiência.
Conta a lenda que há muito, muito tempo, quando os animais
falavam, vivia em Tarsus um homem chamado Cemshab (ou Tasmasp, depende de quem
conta a história), que vivia de vender lenha e mel. Um certo dia Cemshab/Tasmasp
descobriu uma gruta cheia de colmeias com mel de alta qualidade, e convidou os
amigos a explorá-la; mas esses "amigos" estavam mais interessados no
dinheiro que poderiam ganhar e, movidos pela ganância, acabaram por encarcerar
o protagonista desta história no fundo da gruta. Cemshab/Tasmasp ficou encurralado
no escuro, desesperado com a sua (má) sorte - e quando estava prestes a
conformar-se com a fatalidade do que lhe sucedera, reparou que havia um pequeno
buraco, algures no escuro, de onde vinha um fio de luz. Começou a escavar à
volta do buraco até conseguir atravessá-lo, e eis que descobriu um jardim maravilhoso,
cheio de flores e cascatas ao fundo, nuvens e arco-íris e passarinhos a chilrear
- estão a imaginar o cenário, certo?
Tipo "my little pony".
Neste éden imaginado pelas avós persas e curdas, vivia uma
criatura que era mulher da cintura para cima, cobra da cintura para baixo. Era
bonita e jovem como as sereias de outras lendas, frágil como as flores do
jardim onde nascera, a pele da cor do leite que corre nos rios míticos de
outras histórias.
Cemshab/Tasmasp conquistou a confiança de Shahmaran e acabou
por se apaixonar por ela, passando dias e noites a ouvir as histórias que ela
tinha para lhe contar, como que hipnotizado por todo aquele conhecimento, pela
extrema bondade dela, pela beleza que o rodeava.
Passaram-se anos e um belo dia Shahmaran esgotou as
histórias que conhecia - e o seu amado começou a ficar nostálgico, com saudades
da família e da vida que vivera até a conhecer. Partilhou esta sua ansiedade e pouco
tempo depois acabou por decidir regressar à sua terra. Shahmaran aceitou a
decisão, apesar de ter o coração partido, e pediu-lhe que voltasse um dia, se
assim o entendesse:
"Mas por favor nunca contes a ninguém o paradeiro deste
jardim. Não reveles onde vivo, porque temo que um dia alguém me queira
matar."
Cemshab/Tasmasp regressou a casa, e apesar da felicidade de
reencontrar a família ao fim de tanto tempo, nunca esqueceu Shahmaran. Manteve
a promessa durante anos, até que um dia o sultão adoeceu e o vizier, que era
"mau como as cobras", decidiu usar a oportunidade em seu proveito e
anunciou ao povo que a única cura para a doença era comer a carne de Shahmaran.
Todos os homens do reino foram recrutados para descobrir o paradeiro da rainha
das cobras, incluindo o herói desta lenda - e levaram-nos, um a um, para o
hammam, para ver se tinham "escamas" de cobra no corpo. Claro que, ao
descobrirem que Cemshab/Tasmasp tinha estado com Shahmaran, forçaram-no a
revelar a localização do jardim onde vivia a sua amada.
Ao ser apanhada pelos homens do vizier, Shahmaran declarou:
"Saibam que quem comer da parte do meu corpo que é
cobra, ganhará acesso a todos os segredos do mundo. Mas aquele que comer da
minha cabeça, morrerá instantaneamente."
O vizier atirou-se imediatamente a Shahmaran, não pensando
mais na alegada cura do sultão. Mordeu-lhe a cauda e começou a comer a carne de
cobra. Cemshab/Tasmasp, que não aguentou assistir ao sofrimento da amada,
decidiu então o sacrifício final. Comeu-lhe a cabeça, matando-a, e sabendo que
também ia morrer.
Uma espécie de Romeu e Julieta, mas um bocadinho mais
"twisted", portanto.
Mas calma: não se vão embora já. Esta história ainda não
acabou.
Shahmaran tinha mentido nos efeitos de quem come o quê. Na
verdade, quem comesse a sua cauda morria, e quem comesse a cabeça viveria. Ou
seja: o vizier começou a engasgar-se com a carne de cobra, sufocando
imediatamente, rebolando no chão e maldizendo este e aquele, até morrer. Já o
herói desta história viu-se iluminado... mas depois de matar a mulher que
amava.
Viveu para sempre com essa culpa, e foi um grande vizier do
sultão, nos anos que se seguiram.
Já Shahmaran passou, em espírito, para outra cobra; e apesar
de viver amargurada com os homens a partir desse dia, nunca revelou às outras
cobras o que lhe tinha sucedido. Diz-se na Pérsia e no Curdistão que o dia em
que as cobras souberem o que aconteceu naquele dia, vingar-se-ão dos homens e
conquistarão o mundo.
3 comentários:
És um grande contador de lendas...!
E esse teu humorzinho... Maravilhoso! :)
Estava vendo a série nova no Netflix, contando sobre essa história e por acaso achei este artigo pesquisando mais sobre, parabéns pelo trabalho!
Gostei de Saber, adoro lendas. Sempre possuem algo para refletirmos. Estou vendo a série também e resolvi pesquisar. Encontrei você aqui. Obrigada pela história . Amei.
Enviar um comentário