"Por favor tirem-me deste filme!"
"Acha mesmo que isto é um filme, minha senhora?"
A senhora olha para o meu amigo António, do lado de lá da secretária para o lado de cá, um teclado e um monitor, mais papeis e documentos entre ambos; estupefacta pela pergunta.
"E que tipo de filme é que acha que é?", acrescentou ele.
"Um filme de terror!"
Eu deixo-me escorregar um pouco na cadeira, de maneira a esconder o rosto atrás do monitor que está na secretária à minha frente. Rio-me, mas não acho piada nenhuma. Depois olho para a rapariga sentada na secretária ao lado, que tal como nós também está a tratar do passaporte, e que tal como nós está a sorrir: de pânico.
Que filme, digo eu. E não é concerteza um filme de terror. É mais uma espécie de comédia trágica.
Passo a explicar:
Fui tratar do passaporte, hoje de manhã. Um ritual que me vejo obrigado a repetir todos os anos, uma vez que as minhas voltas com os grupos da Nomad enchem-me num instante, e quase por completo, as páginas do documento. Basta uma temporada. Depois é juntar-lhe as "minhas" voltas e reviravoltas... e está um passaporte cheio em menos de doze meses.
Ou seja: uma vez por ano lá vou eu "fazer" um novo. Desta vez fui acompanhado pelo meu amigo António, pois vamos viajar juntos no início do próximo ano e ele também tinha de renovar.
Penso que já falei "por alto" do António, aqui. É um viajante "da nossa praça" que sofreu um acidente em casa, no ano passado, que lhe trocou um bocado as voltas à vida, não interessa entrar em detalhes agora - mas positivo e corajoso como ele é, conseguiu trocar as voltas às voltas e neste momento começa a lançar-se, aos poucos, em aventuras e projectos novos. E as viagens, obviamente, fazem parte dos seus horizontes.
Enfim: isto tudo para justificar o facto de estarmos a ser atendidos no balcão "prioritário", que lida com crianças de colo e pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida.
Esperámos um pouco, pois havia duas crianças à frente.
Uma era a Lara: com dois anos e dois carrapitos, que estava a fazer uma fita feia para tirar a fotografia. Não parava sossegada, chorava baixinho, os pais tentavam acalmá-la mas parecia complicado conseguir que parasse um pouco. E a senhora do balcão, antes ainda das conversas sobre filmes de terror e outros dramas, já demonstrava uma triste falta de paciência. Ora bufava, ora revirava os olhos, olha estalava a língua em desaprovação. Ninguém ali - nem nós que estávamos à espera, nem os pais que estavam com a criança - demonstrava sinais de impaciência ou nervosismo. Ninguém, excepto a senhora atrás do balcão. Que nem sequer é um balcão. É uma secretária.
"Ponha lá a miúda quieta!"
"Minha senhora, a criança tem dois anos, tem que ter um pouco de paciência."
"Eu tenho pessoas à espera!", e lá resmungava qualquer coisa em voz baixa, que ninguém entendia mas que todos percebiam-muito-bem. A senhora atrás do balcão. Que triste constatação.
Levantei-me para dar algum apoio aos pais da Lara, eles agradeceram as dicas e voltei a retirar-me, para não ser muito intrusivo. E foi então que fiquei a conhecer o Alexandre, que era a criança que ia ser atendida a seguir - antes de nós, portanto. O Alexandre devia ter uns três anos. Tinha uma pequena afro bem cuidada e um sorriso de desarmar qualquer um, até um israelita em final de serviço militar, com as hormonas aos saltos de tantos palestinianos matar. Mas políticas à parte: o sorriso do Alexandre. O sorriso e o seu à-vontade conquistaram-nos logo, e num instante estávamos a brincar com ele, ora a dar passou-bens, ou a fazer conversa, ou então ele pedia emprestada a bengala do António, que era quase o dobro da altura do miúdo, e lá ia passear pela sala cheia de gente - muito engraçado.
A Lara e a família lá se despacharam, o Alexandre e o pai acabaram por ser recambiados, pois a mãe não estava presente - e chegou a nossa vez. E levámos com uma daquelas funcionárias públicas clássicas, por muito que me custe descrever isto assim, com este adjectivo, pois tantas vezes já fui bem atendido e gosto de acreditar que mesmo num trabalho alegadamente chato, há pessoas com jeito, com paciência, com brio. Mas não vou entrar nessa discussão agora, senão este post, que já vai longo, mais longo fica.
A verdade é que a senhora encarnava com dedicação (e deve dar imenso trabalho, acreditem) aquela caricatura do funcionário público que está de trombas com a vida, frustrado com o seu trabalho, resmungão e sem qualquer noção do que é atender pessoas.
A qualquer pretexto, fosse porque o sistema ia abaixo, o computador não reconhecia isto-e-aquilo, porque a caneta desaparecia e sei lá que outras pequenas chatices, a senhora lá ia barafustando entre dentes, soprando balões imaginários, sempre com aquele ar de "só a mim" e de "já estava mesmo à espera" ou "tinha de ser". Que stress. É que deve dar imenso trabalho, deve consumir tantas energias, ser assim tão resmungão.
As coisas que ouvimos - e que não vou transcrever aqui.
Mas nós: sempre a sorrir, sempre bem educados, pacientes, solidários.
No hurries, no worries.
Mas saímos dali cansados, confesso. E não foi por esperar imenso tempo para que as máquinas reconhecessem as assinaturas, ou porque o sistema tinha ido abaixo, ou fosse lá o que fosse com os inesperados do momento. Acontece. Bem ou mal, depressa ou devagar, as coisas funcionam, o barco anda, os problemas resolvem-se.
Saímos cansados, porque todo aquele mau humor disfarçado com sorrisos amarelos, ou explicações vindas depois dos desabafos, ou palavras ditas entre dentes como resposta a coisas ditas em voz alta por outras pessoas... não tinha que ser assim. Eu não reclamo por um sistema perfeito, mas por favor: um bocadinho mais de paciência. A vida é Hoje, e este Hoje não é uma dramática fatalidade a que estamos acorrentados. É, na minha opinião, a paisagem que passa. E se não soubermos tirar partido da viagem, que sentido faz chegar ao destino?
Lá está: podia agora demorar-me horas nisto.
Mas o que eu queria mesmo era contar-vos da senhora atrás do balcão. Que nem sequer é um balcão. É uma secretária.
2 comentários:
quando fui tirar um passaporte electrónico(ainda em Lisboa no governo civil) a senhora do balcão (que devia ser irmã ou prima da tua da secretária) embicou que a Maria não era filha legítima porque eu e o Carlos vivemos em união de facto e isso, disse ela, não contava para nada!!!e tive de lá voltar no dia seguinte para explicar ao chefe dela que isso não podia impedir a miúda de tirara uma foto, ter os olhos scaneados e assinar um papelito.
Mais uma peripécia digna de registo!
Vamos lá então ler a da senhora do lado, que por acaso já espreitei porque estou a ler isto por ordem decrescente...! ;)
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