A história que hoje vou partilhar Aconteceu pouco depois das
peripécias com o passaporte (e eu convencido que já tinha vivido as emoções
mais intensas desta minha passagem pelo Myanmar).
Aconteceu depois dos dias maravilhosos passados em Bagan,
que ainda nem tive oportunidade de reviver aqui, com o meu amigo Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe), mais a família do Kyaw Kyaw (sim,
lê-se Joe Joe) e os amigos do Joe Joe (pela terceira vez na mesma frase, e de
certeza não a última na vida deste blog, lê-se Joe Joe); e Aconteceu depois do regresso
a Yangon, num nightbus todo hightech.
Aconteceu durante a viagem de autocarro que fiz de Yangon
para Hpa-An, uma cidadezinha bem no coração do estado Kayin, no sul do país, já bem perto da Tailândia.
Tinham passado pouco mais de duas horas desde que
arrancáramos da estação de autocarros de Yangon, quando Aconteceu. (ou seja: nem
a meio da viagem íamos, pois supostamente seriam sete horas ao todo).
Eu vinha a ouvir música, a ver a paisagem passar, a pensar
sabe-se lá em quê, não me lembro. Aliás: tudo deixou de ter importância,
música-paisagens-pensamentos, no momento em que Aconteceu. No momento em que o autocarro fez uma travagem
brusca - não daquelas travagens de cuidado-para-não-bater, ou de
ia-sendo-foi-por-pouco, mas uma travagem a fundo, já irremediável, de pé bem carregado, seguida
de um estrondo seco e triste, e depois um despiste.
Sim. Um despiste.
A derrapar no alcatrão, a
viatura (e todos os passageiros) deu uma guinada para a esquerda, felizmente
não vinha ninguém no sentido contrário, e atravessou-se na estrada. Agarrei-me com
toda a força ao banco da frente, tudo uma questão de segundos, nem deu para dizer ó-meu-deus, mas que ao mesmo tempo
pareceu uma eternidade, e nessa eternidade rezei pais-nossos e avé-marias, sem saber onde é que isto tudo ia parar, e em que estado.
Aconteceu.
Aquele instante.
Aquele em que não sabes ainda muito bem o que Aconteceu, e se o
autocarro vai virar, ou se vai albarroar as barracas que vês à frente, ou se
vem um camião atrás que vai chocar contra nós. Sabes que Aconteceu, mas a Sorte
está ainda a girar na roleta, o Universo a rodopiar descontrolado, não há quem tenha mão nisto, não há quem bata na mesa com o punho fechado e diga já-chega. Já te apercebeste que Começou, não sabes ainda como
vai Acabar. E passa tão depressa
- afinal, é só um instante.
O autocarrou parou. O universo parou. O coração acelerou. Bumbumbumbum. E as rodas do lado direito ainda no
alcatrão, e as da esquerda já na terra batida, e a centímetros de tudo isto um restaurante de
estrada. Imagino o susto das pessoas que ali estavam sentadas, ao ver aquele monstro
descontrolado a vir na sua direcção. Ou então não imagino nada, eu sei lá.
Eu só sei como foi que Aconteceu, visto de quem estava dentro do autocarro.
Parou, finalmente. Sentiu-se o aliviar do susto
enorme de quem, como eu, achou que isto ia ter desfecho pior. Mas... por outro
lado... as mulheres sentadas nos bancos da frente não paravam de gritar. O
condutor batia com a cabeça no volante, enquanto chorava uma ladainha
desesperada. Os passageiros da fila à minha frente levantaram-se e ficaram
parados no corredor, sem dizer nada.
Desembaracei-me do fio branco dos fones.
"What happened?", perguntou assustado o holandês
sentado à minha frente. Nós e um vietnamita éramos os únicos estrangeiros a
bordo do autocarro.
Estávamos imobilizados em contra-mão, com a viatura
atravessada na diagonal. O Universo à nossa volta: parado. Que estranho
silêncio, que não é silêncio nenhum. Não interessava mais do que aquilo que
estávamos a viver.
Levantei-me para tentar perceber o que se passara. Dei dois
ou três passos no corredor. E então.
Então vi.
Um corpo estendido na estrada. Todo torcido, parecia um
trapo enorme, triste e abandonado. E à frente já estava uma pequena multidão de "jornalistas", a tirar fotografias ao atropelado.
Dei um salto, em choque, e quase mandei ao chão a pessoa que
vinha atrás de mim. "Sorry-sorry" e recuei de novo para o meu lugar.
Não queria ver mais. Já tinha visto o suficiente.
"What's there? What did you see?", perguntou o
vietnamita.
Descrevi rapidamente a cena. Passámos alguns minutos sem
saber o que fazer. O que dizer. O que se faz, numa situação destas? O que se diz?
"Oh no, oh nooo..."
O vietnamita empalidecera, de repente, enquanto olhava pela janela.
"What happened?"
"Acabei de ver o corpo a ser levado num riquexó."
A sério. Nem cinco minutos tinham passado - e qual ambulância,
qual quê. O atropelado foi levado de imediato para um hospital a trinta quilómetros do
acidente. Concerteza que não foi de riquexó toda a distância - mas saiu de riquexó. Assim nos explicaram, mais tarde.
Entretanto começaram as manobras para tirar o autocarro da
estrada. Com todos os passageiros lá dentro, incluindo nós. Para a frente e para trás - e pelo
meio mandámos abaixo uns cabos de electricidade e um poste. Estávamos a menos
de cem metros da esquadra local. Ou seja, o autocarro acabou por ficar
estacionado entre outras viaturas acidentadas - que, diga-se de boa justiça,
estavam em bastante pior estado que a nossa.
A terrinha chamava-se Waw.
Saímos para a rua e espreitámos os danos na viatura. Umas
amolgadelas, o vidro partido. Deambulámos um pouco entre os locais, tentámos
meter conversa, mas a única pessoa que falava inglês desapareceu nos primeiros
minutos, e muito sinceramente achei melhor não entrarmos em grande paranóia. O
raciocínio foi o seguinte: se os locais estão todos aqui, é porque vão enviar
novo autocarro. Senão já tinham encontrado forma de ir embora.
Por isso ficámos.
Pacientemente à espera, daqui a bocado "já se vê".
Primeiro sentámo-nos no alpendre da esquadra, de onde assistimos
às movimentações do driver e da
polícia. Havia sempre um oficial a acompanhar o primeiro. Acabou por ser
encaminhado para uma cela, não sei se por eventual culpa no acidente, ou para o
proteger de possíveis ânimos exaltados.
A seguir viemos para a rua, mas o calor era insuportável. Os
passageiros estavam espalhados pelo jardim da esquadra, sentados num alpendre
ou debaixo de umas árvores, ou num pequeno café do outro lado da estrada.
Depois de algumas voltinhas sem sentido algum, acabei por me
sentar no tal café, de frente para uma ventoinha enorme, suja e barulhenta. Bebi
qualquer coisa, já nem me lembro o quê. Não tinham comida. O holandês sentou-se
comigo à conversa, o vietnamita desapareceu. Voltou duas horas depois, tinha
descoberto um mercado e comprou uns tecidos tradicionais.
Discutimos o acidente e especulámos sobre o que teria
acontecido àquela pessoa. Os cuidados médicos no Myanmar são muito básicos -
mesmo que tenha sobrevivido, qual será o preço a pagar? Que tipo de vida o
espera?
Passou uma ambulância. Outro acidente, de certeza.
A certa altura decidimos não filosofar mais sobre o
sucedido. Afinal: quantas vezes é que passamos na estrada por acidentes,
passamos e continuamos, não-olhes, não-olhes, fomos ensinados a não-olhar.
"Não é contigo". Temos incutidos constragimentos vários acerca do
sofrimento alheio, mas ao mesmo tempo a sociedade alimenta o nosso lado voyeur através dos meios de comunicação.
Não olhes para a pessoa que está a morrer à tua frente, mas se for num ecrã de
televisão já não faz mal.
Chama-lhe Hollywood, acrescenta uma banda sonora. Não faz
mal.
Mas aqui: aqui passámos ao lado. Aqui fizemos parte. Fomos
protagonistas - ou, conforme o ponto de vista, fomos pelo menos figurantes.
Aqui, por instantes, chegámos a temer pelo mesmo destino que esta pessoa deitada
no chão, a ser fotografada. Aqui é diferente. E a banda sonora, de qualquer
forma, a música que estava a ouvir quando tudo aconteceu - eu lembro-me lá do
que estava a ouvir, deixou de ter importância a partir do momento que o
Universo parou.
Ok, combinámos não falar mais sobre isto. Estamos bem, a
pessoa foi encaminhada sabe-se lá para onde, não há nada que possamos fazer.
Agora é prosseguir caminho, continuar as nossas viagens.
Isto é tudo-tão-estranho. É contraditório, até, em algumas das
sensações, das reacções, das opiniões. Se eu fosse agora aprofundar tudo o que
foi falado ali naquela mesa ao lado da estrada, em frente a uma ventoinha
enorme e barulhenta. E tudo o que me passa pela cabeça, neste momento.
Mas não interessa. Já não interessa.
E a verdade é mesmo esta: a vida - a viagem - continua.
Onde é que está o autocarro de substituição?
Três horas. Pouco mais de três horas depois, chegou o novo
autocarro. "Novo", salvo seja. Bem mais "vintage" que o
original. Enfim. Em silêncio, deixámos para trás este bocadinho do Universo
onde, por momentos, partilhámos uma sensação tão profunda, tão derradeira, tão
fatalista. E se... e se viesse algum carro em contra-mão... e se o autocarro se
tivesse virado... e se... e se...
Está tudo bem. Está tudo bem.
Mais cinco horas de estrada. Entretanto fez-se noite e o driver do segundo autocarro era
completamente alucinado. Travagens e guinadas - que viagem silenciosa, esta.
Mas chegámos. Chegámos às dez da noite aos arredores de Hpa-An. E parámos.
Antes da ponte, a cinco quilometros do centro. Antes das portagens, portanto.
Alguém nos explicou (afinal havia mais alguém a falar inglês!) que o driver se recusava a passar a ponte.
Ninguém percebeu porquê. Pelo menos nós. Telefonou para a agência e quinze
minutos depois estávamos a ser transferidos para o terceiro autocarro da viagem,
mais pequeno e bastante vivido, onde vinham as pessoas que iam voltar para
Yangon... com este driver alucinado,
que entretanto já tinha cinco horas de condução em cima.
Quando (finalmente!) cheguei ao hotel, sem comer desde o
pequeno-almoço, estava exausto. Zero energia. A rapariga da recepção ouviu o
relato do acidente e contou-me que já lhe tinham falado do sucedido - e
acrescentou que, pouco depois, houve perto de nós outro acidente, mas com
mortos e feridos entre os passageiros. Daí a ambulância que passou.
Realmente: a Sorte é muito relativa.
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