03/10/2013

PRIVILÉGIOS E CONTRARIEDADES

Neste post volto a um tema que já foi aqui abordado, mas em diferentes geografias, condições meteorilógicas e estados de espírito.

Habituados a entrar em quase todos os países sem grandes contrariedades, os viajantes europeus nem se apercebem do privilégio que gozam por terem o passaporte que têm.

A última peripécia a envolver este tema aconteceu à entrada de Singapura, na semana passada. E, mais uma vez, a "vítima" foi o meu amigo Bunty - que tem passaporte indiano. O Bunty veio ter comigo a Kuala Lumpur há dez dias, pois vai acompanhar-me nas próximas semanas, nas voltas pré-Birmânia e Indochina. Ainda na Índia, renovou o seu visto da Malásia: ao contrário dos europeus (que não precisam de visto), aos indianos é requerido um visto de entradas múltiplas, válido por um ano. E como já estava planeado passarmos uns dias em Singapura, fez também o visto correspondente. Válido por dois anos, entradas múltiplas, tudo em ordem. Pensava ele.

Na passada sexta-feira, saímos de Kuala Lumpur num autocarro da empresa "Super Nice" e, depois de várias horas de viagem e das rápidas formalidades à saída da Malásia, chegámos ao "lado de lá": a entrada em Singapura.

Foi preciso tirar as mochilas do autocarro e passar pela Imigração, Alfândega - o normal, numa fronteira.

Eu não tive qualquer problema. Carimbo-aqui e carimbo-ali, toca a andar, bem vindo a Singapura. Mas o mesmo não aconteceu com o Bunty.

Apesar de ter o visto feito, pediram-lhe cópias do voo de saída do país, e o itinerário completo da viagem até chegar à Índia. O Bunty providenciou tudo o que tinha de providenciar: bilhetes de Singapura para Manila, Manila para Cebu, Cebu para Kuala Lumpur, Kuala Lumpur para Yangon, Yangon para Bangkok e Bangkok para Calcutá... uff! E, mesmo assim, havia dúvidas. Tem um passaporte cheio de vistos e carimbos, com três páginas em branco, é claramente um viajante. Tem dinheiro na conta - mostrou os papéis, mais uma vez. E, mesmo assim, pediram-lhe para aguardar um pouco, e para acompanharem uma pessoa até uma sala, onde iam confirmar todos os dados.

Eu fui para o autocarro. E fiquei à espera.

"Se houver algum problema eu ligo-te," disse-me o meu cúmplice de viagem.

Passaram dez minutos. Nada. Toda a gente dentro do autocarro, pronta para seguir viagem. Eu e o condutor sentados do lado de fora, à espera. Onde estará o Bunty?

"Onde é que está o seu amigo?", perguntou-me o condutor.

"Na Imigração, a verificar uns papéis."

"Primeira vez em Singapura?"

"Para ele, sim."

Acenou que sim com a cabeça, satisfeito com a resposta. Isto deve acontecer imensas vezes, pensei. Mas passaram-se outros dez minutos, e mais cinco... e o Bunty nem vê-lo.

"Só podemos esperar mais cinco minutos. Se o seu amigo não vier entretanto, temos que seguir viagem."

Claro que têm, pensei. Não refilei, não "levantei ondas", já estava satisfeito por terem esperado tanto tempo, nunca pensei que fossem ter tanta paciência.

Os cinco minutos passaramn num instante:

"Temos que ir embora, desculpe."

Tirei as mochilas da bagageira, o condutor despediu-se e lá se foi embora o autocarro. Super Nice, agora estamos presos aqui na fronteira, um de cada lado. O autocarro desapareceu na primeira curva e eu sentei-me num murete, à espera, a tentar não pensar no pior, porque não havia razão para pensar no pior. E o pior é o quê, afinal?

Passaram-se outros dez minutos. Eu à espera, o Bunty sabe-se lá onde, já não conseguia evitar conjunturas e planos B. Vamos voltar para a Malásia, está-se mesmo a ver.

E eis que subitamente surge o sorridente indiano, a descer as escadas com a mochila às costas, cinha aborrecido com o sucedido mas conformado porque são "as contrariedades do costume". Explicou-me que havia imensa gente na tal sala para onde foi levado, "especialmente indianos e brasileiros", e que passou a maior parte do tempo à espera. Mas assim que foi atendido, confirmaram as reservas dos voos e deixaram-no vir embora.

O problema agora era outro: não tínhamos transporte para a cidade. O autocarro desaparecera, havia dezenas de outros mas de certeza que ninguém nos levaria. Estávamos dispostos a pagar qualquer coisa extra... um taxi, se tiver de ser.

Olhei em redor, à procura de alguma indicação... e eis que a pouca distância estava um autocarro da mesma empresa em que viajáramos. Super Nice! Estava a arrancar por isso desatámos a correr, eu à frente cheio de planos e ideias, o Bunty atrás a perguntar "o que foi, o que foi".

Bati à porta do autocarro e o "pica" fez sinal que "não", com a cabeça. Eu insisti e saquei dos bilhetes. Que eram do outro autocarro, não deste. Mas o senhor abriu a porta. O que foi? Expliquei-lhe que tínhamos vindo de Kuala Lumpur num autocarro da mesma empresa, contei-lhe do problema do Bunty na fronteira, etc, etc... e não é que o senhor nos manda entrar?

Sentámo-nos. Singapura, here we go.

Privilégios de que nem damos conta. Contrariedades a que já nem ligamos. A vida é feita de uns e outros - e são tantas as vezes que nem damos valor à sorte que temos, ou damos demasiado importância aos pequenos azares. E depois há as coincidências, os desencontros e as surpresas. E há estes momentos de sorte: num instante estávamos "presos" na fronteira sem saber o que fazer, no outro estamos dentro de um autocarro luxuoso, a viajar "à borla" até Singapura.

2 comentários:

LV disse...

a vida é mesmo assim, mas quando acaba tão bem é ainda melhor .... dá-se valor a uns e não se liga a outros, mas no final do dia, agradecer é uma benção.... mts bjs

Clara Amorim disse...

Está mais que visto!!! O Bunty tem de mudar de nacionalidade... Para uma Super Nice!!!!! ;)