Lembro-me perfeitamente do dia.
Tinha passado o Natal em Goa com uns amigos indianos, todos eles muçulmanos mas que me fizeram um jantar delicioso de galinha com coentros. E porque a minha prima Joana e uma amiga de longa data, a Assunção, vinham ter comigo para passar o Ano Novo na Índia; meti-me nessa mesma noite num autocarro a caminho de Bombaim.
Passei a noite na estrada. E quando de manhã cheguei ao meu destino, meti-me num riquexó e pedi que me levasse a casa do meu amigo Rajeev, onde eu estava hospedado. Terá sido nesta altura que as primeiras ondas atingiram Chennai e a costa leste do país. E concerteza que piores horrores já se viviam na Indonésia, Tailândia e outros lugares. Só que o mundo ainda não sabia.
Lembro-me de chegar a casa e encontrar um recado:
QUANDO TE DESPACHARES
VEM TER A CASA DA MINHA MÃE,
PODES COMER QUALQUER COISA LÁ.
PODES COMER QUALQUER COISA LÁ.
Tomei um banho e demorei-me a desfazer a mala e a vestir-me outra vez, estava estafado da viagem, não tinha conseguido dormir nada. Tomei algumas notas e deitei-me na minha cama, não me apetecia nada sair dali... mas quando a fome apertou, levantei-me e fui então ter ao outro apartamento da família Kinchii, que ficava a pouco mais de quinhentos metros.
As ruas estavam desertas - o que, por si só, já era estranho em Bombaim. Mas eu estava tão "a leste" que apesar de reparar no facto, nem me perguntei porquê.
E quando cheguei a casa: silêncio.
A mãe do Rajeev chorava.
A televisão estava ligada.
Sentei-me.
Naquele momento ainda nem se sabia muito bem o que estava a acontecer. Começou por falar-se de um terramoto. Depois começaram a chegar as imagens. Os números. Os factos. As histórias. Ao longo daquele dia começou a desenhar-se a tragédia e todos os seus contornos. E no dia seguinte. E depois. Demorou a perceber-se tudo.
Que horror. Que horror.
Que dia tão triste; que partida esta, que a Natureza nos pregou, a lembrar de quem é que na verdade manda aqui. Por muito que nos habituemos a pensar, e por muito que nos convencemos, no agir.
Hoje lembramos os que partiram. E os que ficaram. Uma década - o mundo continua. Mesmo que, no limite, ninguém fique para continuar a História. E isso deveria ser também uma lição. Uma lição de humildade e até de amor ao próximo. Neste ano deu-me a sensação que falou-se, mais do que nunca, de terrores causados pela mão humana. Quem é que se pode dar a este luxo, quando a natureza num só momento de mau humor, relativiza tudo à nossa volta.
Enfim: dá que pensar.
E porque não me quero demorar mais sobre o assunto, deixo-vos então um link para os posts que publiquei nesse longínquo Dezembro de 2004, há dez anos atrás - quase todos antes da tragédia, e um deles já a tentar digerir o que estava a acontecer.
1 comentário:
E já se passaram 10 anos...!
Vou reler o que publicaste na altura...
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