05/11/2014

UMA MASSAGEM ECLÉTICA

O grupo foi-se embora.

Fiquei sozinho em Mandalay, enfiei-me na cama porque o corpo pedia almofada e a cabeça viajava algures entre a nostalgia das aventuras mais recentes e das experiências vividas, das amizades construídas; e também na vontade de me lançar à descoberta sozinho, por pouco tempo que seja, explorar um bocadinho mais de planeta; mais algum cansaço à mistura, aquela sensação que só passa depois de respirar fundo, e depois de umas horas na horizontal. E aquele sorriso antigo, o que tem tanto de "missão cumprida" como de "sou um gajo com sorte".

Dormi uma tarde inteira e ao início da noite fui dar uma volta a pé. Ao passar por um cartaz iluminado a dizer "foot massage", não resisti a entrar. Acabei por me sentar num colchão, entre vários outros, separados apenas por finas cortinas. No silêncio da sala ouvia-se a ventoinha e percebia-se o movimento de outras massagens já a decorrer. Apareceu um rapaz que me mandou deitar, espalhou óleo nas mãos e lançou-se aos meus pés sem cerimónia. Perguntou-me, num inglês esforçado, de onde eu era.

"Ah! Vasco da Gama, he found the way to India," respondeu-me.

Olha-me este.

Ronaldo-quê? Qual Ronaldo: este tem a lição bem estudada.

Depois, quase em piloto automático, quis saber se eu estava a gostar da Birmânia, onde é que eu tinha ido no seu país. Fui respondendo à medida que as suas mãos trabalhavam as plantas dos meus pés, entre os dedos, calcanhares e até o tendão de aquiles, que ultimamente tem-me dado razões de queixa. Mas não hoje. Seguiu-se algum silêncio e quando eu achava que estava a conversa acabada e que ia finalmente poder entrar em estado zen, eis que o miúdo volta à carga:

"What is your job?"

Expliquei-lhe que viajar era o meu trabalho. Que organizava umas aventuras no Sudeste Asiático e na Birmânia com uma agência em Portugal. E que escrevia. E então a massagem parou, mas só por um instante. Depois retomou o ritmo, mas alguma coisa acontecera. Será que eu disse alguma coisa que foi mal interpretada?

"You are writer?"

Sim, respondi timidamente.

Notava-se na forma como as suas mãos trabalhavam, que havia um interesse neste tema mais profundo que mera curiosidade, ou que uma conversa de ocasião.

"What kind of writer? Poet or fiction?"

Ok: este não é um massagista qualquer.

"Travel writer."

Acho que ficou um bocado desiludido, mas a partir daqui não havia volta a dar. Explicou-me que era poeta. Nome de código: o poeta hooligan. Que estava a estudar Literatura em Rangum mas que tinha vindo passar uns meses a Mandalay para fazer algum dinheiro extra. Que voltaria para as aulas daí a poucos dias. E sem que eu perguntasse, porque sinceramente ainda não tinha conseguido avaliar a seriedade da conversa do rapaz, além de estar preso ao típico preconceito de "mas como é que um massagista sabe mais do que fazer massagens", o puto começou a falar de Leo Tolstoi e de Hemingway, entre outros clássicos. Irresistível.

A massagem, por esta altura, era só paisagem.

Ou uma desculpa.

Falámos de livros e de cinema, de música e, claro: viagens. O miúdo explicou-me que tinha uma paixão enorme pelo Egipto, os faraós e Cleopatra, mais a Revolução Francesa, Napoleão, Cristóvão Colombo, os romanos... e queria muito viajar para o Egipto, Roma e Paris.

Que hora eclética, que inesperado massagista.

Tinha horror a hip hop (o que, aos vinte e dois anos, hoje em dia, é um fenómeno), gostava dos clássicos do rock e até de alguns sons mais pesados cujos nomes agora não consigo pronunciar.

A massagem, confesso, não foi nada de especial. Mas quando me fui embora levava um sorriso renovado e cheio, porque é sempre bom ser surpreendido, faz bem levar com um abanão nos preconceitos e descobrir que em todo o lado, a toda a hora, há pessoas que são histórias que são sonhos que são mundos.

1 comentário:

Clara Amorim disse...

Bem, não é todos os dias que temos direito a uma massagem poética!!! ;)