26/09/2013

TIME WILL TELL THE DIFFERENCE

"Carros, riquexós, motas, camiões: uma cacofonia de buzinadelas, o cheiro a tubo de escape e a esgoto. Lixo amontoado onde há espaço - e à volta. Uma ovelha amarrada a um poste de electricidade. Cães escanzelados, vacas sagradas, cabras miseráveis. Cartazes de filmes. Poças de lama. Lixo. Que fedor a mijo. Que desoladora confusão, tenho um quarto com vista para o Inferno. Junto a um muro pintado com publicidade a uma cimenteira: um miúdo de cócoras, com as calças à volta dos tornozelos e um pequeno balde azul-claro, cheio de água, pousado no chão junto a seus pés. O trânsito a passar mesmo em frente: mera paisagem, como se estivesse na casa-de-banho de um quarto de hotel, pacatamente a ver a cidade a acontecer, pela janela. Como eu, provavelmente, daqui a pouco. Uma vaca a mastigar restos-de-restos, na lixeira mesmo ao lado. O riquexó parado a dois ou três metros, para deixar sair uma senhora de sari, cheia de indiferença e cores e brilhantes, sacos de plástico e legumes. Tudo paisagem. Uma criança tenta trepar as pernas da mãe, ainda não sabe andar. A mãe pega num saco cheio de tijolos e põe-no em cima da cabeça de outra mulher, que o leva para outro lado. Daqui a pouco vão repetir o ritual, mas quem leva os tijolos na cabeça é a mulher que tem a criança enrolada na perna. Em cima do amontoado de tijolos: um homem imundo, vestido de trapos e tempo e cheiros, mais cinzento que a poça de água onde brincam dois miúdos que não devem ter mais que dois-três anos."


Completam-se hoje dez anos do dia em que escrevi o texto que serviu de inspiração para aquele que aqui transcrevi. Mais-palavra, menos-palavra, era mais ou menos isto. Foi isto que senti. Foi isto que vivi, no meu primeiro dia na Índia.

Tem piada, revisitar estas sensações antigas, estas primeiras impressões, ainda tão frescas, inocentes - ainda virgens.

Das notas originais ao parágrafo que transcrevo no início deste post, passou uma década de mudanças, de surpresas, de encontros e desencontros, de gargalhadas, arrepios e lágrimas.

Eu mudei. A Índia mudou. A relação que tenho com o país, com o ambiente, as pessoas, as suas tradições e cultura - tudo evoluiu, nesta e naquela direcção, aos ziguezagues, aos solavancos, sem metas definidas, sem um ponto de chegada.

A jornada é o destino, diz a tatuagem que tenho no braço. Não se podia enquadrar melhor.

No seguimento da recente "resolução" acerca de uma nova rúbrica chamada "Há 10 anos", que pretendo actualizar regularmente com episódios e peripécias vividas em outras viagens, noutros tempos - vou aproveitar esta onda de renovação e lançar ainda outra novidade.

Preciso de pôr algumas ideias em ordem, mas estou seriamente a planear dedicar um dia por semana à Índia, aqui no blog. Com histórias antigas, curiosidades novas, momentos e sorrisos que merecem ser partilhados. Tanto por contar. E, como dizem na Índia: tudo é possível.

2 comentários:

Clara Amorim disse...

Claro, viajar, no verdadeiro sentido da palavra, é isso mesmo que descreves... Por um lado, um constante "amealhar" de emoções, de sentimentos, de vivências que ficarão para sempre no nosso "cofre"; por outro lado, um constante crescimento interior que se vai reflectindo na forma como apreendemos o exterior!!! :)

O Mundo da Maria disse...

ADORO essa novidade...de contar e re-contar a Índia! Vou aguardar :)