08/03/2016

À CONVERSA COM AS MULHERES CHIN

Conta a lenda que há muito, muito tempo, os reis e os príncipes Rakhine tinham por hábito raptar mulheres das aldeias, para fazerem delas suas escravas. Uma vez que a beleza das raparigas de etnia Chin era lendária, as aldeias nas margens do rio Lemro e nas encostas do Monte Victoria eram constantemente "visitadas" por emissários reais - pelo que os Chin tiveram de encontrar uma solução para tornar as suas mulheres mais feias.

Assim nasceu a tradição de tatuar os rostos das mulheres Chin.

"Tinha oito, nove anos quando fiz isto", diz-me a mais conversadora das quatro mulheres sentadas ao meu lado, todas de cara marcada com uma espécie de teia de aranha, a boca avermelhada com o bétel que têm por hábito mascar. Temos um tradutor, claro - um jovem missionário chin que fala um inglês impecável, voluntário a dar aulas na escola da aldeia construída por benfeitores italianos.

Esta conversa passou-se há uma semana, quando estava em Mrauk Oo - mas confesso que estava a guardar a história para o Dia da Mulher.

Fui dar uma volta pelas aldeias Chin, num tour com mais três pessoas - os outros estrangeiros que entraram no "meu" autocarro, acabámos por ficar os quatro na mesma guesthouse. Saímos de manhãzinha de Mrauk Oo e começámos por visitar o Pagoda de Kothaung, a maior das ruínas da região - e provavelmente a mais famosa-, construído em 1553 e cujo nome significa "Santuário das 90.000 imagens".

É um lugar espectacular, fez-me lembrar Borobudur.



Daqui continuámos estrada fora até chegarmos a uma aldeia piscatória nas margens do rio Lemro, onde nos esperava o pequeno barco que nos levou a passear. Foram quase duas horas "para cima", visitámos três aldeias, almoçámos e ainda tivemos tempo de nadar no rio, tão limpo que os locais bebem a sua água.


Mas voltando à conversa com as mulheres Chin, o motivo principal que nos levou a fazer este tour, e obviamente a razão de ser desta crónica:

"Deitaram-me de costas, o rosto virado para cima, a cabeça apertada entre os joelhos da tatuadora. Eu estava aterrorizada, mas sabia que tinha de ser, a maior parte das mulheres da minha aldeia era tatuada... e eu tinha que cumprir a tradição. Demorou dois dias, foi horrível, por sorte não tive nenhuma infecção."

Confesso que estava um bocadinho céptico, antes de me juntar a este passeio. Normalmente não alinho em tours que vão ver "as tribos", pois custa-me fazer parte do circo de turistas que se comportam como se estivessem num zoo humano. Não costumo ir ver as "mulheres-girafa", por exemplo. Aliás: a própria "alcunha" já remete para o tal zoo, pois na verdade o nome da etnia é Padaung. Enfim: normalmente não as vou ver no Lago Inle (e nunca as fotografei) pois sei que são deslocadas das aldeias originais para lugares onde estão turistas, além de que o dinheiro que eventualmente geram não vai necessariamente para elas, mas para os "empregadores". Outra razão é de que muitas miúdas Padaung são "incentivadas" (o que pode ser uma forma simpática de dizer "forçadas") a manter a tradição, mas sempre com o olho no dólar do turista. Dito isto, claro que também eu sou curioso - e depois de debater o assunto com os meus companheiros de viagem e com o senhor que nos ia levar a passear, decidimos ir. A prática de tatuar os rostos é hoje proibida, estas são as últimas mulheres tatuadas, vivem nas próprias aldeias onde cresceram e têm um gosto genuíno em partilhar as suas histórias. E se começar a "descambar", combinámos entre os quatro, podemos sempre voltar para trás.

Não descambou.

Ainda ameaçou, ao início. Na primeira aldeia as mulheres falavam pouco e todas tinham um pequeno negócio de tapeçaria, que aproveitavam para vender aos turistas. Genuíno, pertinente, ainda sem chocar demasiado - mas o primeiro passo para "descambar".

Enfim: conversámos um pouco mas sem tradutor era difícil muita conversa, por isso demos uma volta na aldeia, cada um comprou uma peça feita por elas... e confesso que saímos dali com sentimentos mistos, por um lado sabíamos que estávamos a ajudar, por outro isto pode ser o início do tal zoo. Neste momento há pouco mais de mil pessoas por ano a visitar estas aldeias. É pouco... mas já é alguma coisa.
 


Continuámos. Se na segunda aldeia for assim, se calhar mais vale voltar para Mrauk Oo.

Mas não foi.

Na segunda aldeia fomos recebidos pelo John, um jovem missionário de etnia Chin - curiosamente, a maioria dos Chin é cristão - que falava um inglês impecável e que nos ajudou numa das conversas mais interessantes que tive nos últimos tempos.

Sentámo-nos à sombra de uma casa de bambu - nós quatro, o tradutor, o guia e os miúdos que nos trouxeram de barco, e ainda quatro mulheres Chin e uma data de crianças curiosas. Conversámos, almoçámos, conversámos... fizemos todas as perguntas que nos lembrámos de fazer, elas responderam com um gosto imenso e aparentemente genuíno por partilharem a sua cultura com estranhos.



Explicaram-nos como tudo começou por ser uma forma de tornar as mulheres feias, mas ao longo dos tempos tornou-se numa característica de beleza, e alguns homens Chin nem consideravam casar com uma mulher não-tatuada.

"Casei por amor, não por conveniência. O meu marido dizia que eu era corajosa e bonita. Mas eu acho que sou feia, para ser honesta."

E, no entanto, quando lhe pergunto sobre a relação das netas com o facto da avó ser tatuada:

"Por mim eram todas tatuadas, também. A tradição devia ser cumprida, faz parte da nossa identidade. Mas agora é proíbido."

O ritual de tatuar o rosto das raparigas Chin começou a perder força com a chegada de missionários cristãos, há alguns séculos; e acabou por ser banido nos anos 60, pelo Conselho Revolucionário que governou o país entre 1962 e 1974.

Dos cento e trinta grupos étnicos que vivem no Myanmar, mais de cinquenta são Chin - e cada um se identifica com um padrão diferente. Nestas aldeias que visitei as mulheres têm uma espécie de teia de aranha no rosto... mas há tribos que usam apenas umas linhas a atravessar cada bochecha, outras fazem desenhos com pontos, círculos, ou combinações de vários destes estilos.

As tatuagens eram feitas antes das raparigas atingirem a puberdade, entre os nove e os doze anos, e o ritual era, como se pode calcular, doloroso... e muito perigoso. Algumas miúdas morriam com infecções. O líquido "injectado" na pele era feito de uma mistura de cortiça de pinheiro queimada com folhas de um feijoeiro... e quando não era de boa qualidade acabava por desaparecer, o que obrigava a repetir o processo.

A família tinha de pagar qualquer coisa à tatuadora: podia ser um porco ou outro animal, algum dinheiro, bebidas. Acreditava-se também que um sumo tradicional ajudava a diminuir a dor... ou seja, cá para mim aquilo tinha álcool ou mesmo alguma "erva mágica".

Foi uma tarde muito interessante, no mínimo. Não só aprendi um pouco sobre este bocadinho de mundo que não conhecia, como partilhámos histórias pessoais e rimos juntos. Uma das senhoras contou-nos, por exemplo, sobre a primeira vez que veio um estrangeiro à aldeia. Passou o dia a tirar-lhes fotografias, ela até já estava com medo porque não sabia que máquina era aquela que ele lhe apontava.

"Mas agora estou habituada", admite.

"E não se chateia?"

"Nada disso. É normal as pessoas terem curiosidade, nunca viram. Além disso, graças aos turistas já temos um tanque de água na aldeia, uma escola nova e mais alguma infra-estruturas. Antes dos turistas virem ninguém queria saber de nós."

Na despedida, quando uma das senhoras me segurou nas mãos e eu lhe desejei uma longa vida, ela pediu ao John para ele me dizer que ia rezar por mim, quando visitasse o templo.

Na terceira aldeia, abdicámos de ir "ver as mulheres tatuadas". A experiência com o John e as quatro mulheres tinha sido muito completa, não precisávamos de alimentar o lado mais voyeur do passeio. Em vez disso demos uma volta rápida à aldeia e no regresso ao barco perguntámos se era possível tomar banho no rio.

"Claro que sim!"

Acabámos o tour a nadar no rio de água límpida, antes do regresso a Mrauk Oo. Voltámos com a "alma cheia": o banho final, a paisagem à nossa volta, a vida das aldeias no rio... e, acima de tudo, a conversa com o John e as mulheres Chin, e o confronto com a fatalidade de uma tradição que, por muito singular que seja, tem os dias contados. Quando estas mulheres se juntarem aos seus antepassados... isto acaba. E, se pessoalmente posso ter alguns sentimentos contraditórios, na qualidade de autor deste blog fico satisfeito por partilhar um bocadinho do que aprendi... e de fazer assim uma pequena homenagem a estas mulheres que já passaram por muito.


Votos de um feliz Dia das Mulheres!

2 comentários:

Joana Fragoso disse...

<3 adoro!

Clara Amorim disse...

Que post mais lindo! Obrigada! 😊