Há dias em que parece que o Mundo todo está de pernas para o ar, trocas as voltas aos pontos cardeais, aos tempos verbais e aos sinais vitais, de repente o sol nasce a Oeste e põe-se de manhãzinha, e os pássaros da Mafalda são do Norte e a pronúncia do Rui é do Sul, e não há horóscopo que te salve porque nem sequer podes culpar o Mercúrio Retrógado. O GPS vira WTF, não há mapas nem coordenadas nem cata-ventos nem bruxas nem share locations que te valham.
Mas já lá vamos.
Acabei há dias a 4ª edição da viagem ao México que organizo com os Trilhos da Terra, por ocasião do Dia de Muertos. Foram vinte e um dias épicos por este país colorido e intenso – a descobrir sabores, histórias, personagens, curiosidades várias... e, como seria de esperar, não só adorei partilhar tudo isso com os meus viajantes, como cheguei ao fim toooodo partido. De tal forma que, mal me separei deles, em Cancun, reservei uma noite no hotel mais perto da estação de autocarros e ali aterrei. Nem sequer saí para jantar: fiquei no quarto a fechar contas, a fazer o rascunho de um plano para os próximos dias... e adormeci.
Dez horas depois – dez! – acordei meio banzado. Não estou habituado a dormir tanto, mas se o corpo pede é porque o corpo precisa, e eu já sei que depois de um grupo preciso sempre de uns dias assim, entre a ronha e a ressaca.
O plano era ficar três dias algures por aqui; e depois voar para El Salvador. Contudo, e como podes calcular, queria tudo menos ficar em Cancun. Pus-me a investigar um bocadinho sobre a zona (curiosamente, e apesar de já ter vivido e viajado muito no México, não conheço quase nada da Riviera Maya – e gosto pouco do que já vi aqui, confesso) e acabei por reservar um quarto em Puerto Morelos. Pareceu-me mais calminho do que Cancun, Playa del Carmen e afins.
E assim nos aproximamos da parte do dia que dá o nome e o mote a esta crónica: com as tais dez horas de sono em cima, fiz check out do hotel, quase trinta minutos depois da hora limite (o que deu direito a uma silenciosa repreensão (e grátis) do recepcionista de serviço; e saí para o calor húmido com as mochilas cheias e o estômago ainda vazio. Por um lado, queria sentar-me a comer qualquer coisa, estava com uma ligeira dor de cabeça e a tal sensação de ressaca... por outro, quando mais depressa chegasse a Puerto Morelos, melhor – já só queria deitar-me numa espreguiçadeira, na praia...
Do hotel à estação de autocarros eram meia dúzia de passos e, pelo caminho, duas lojas de souvenirs, uma banca a vender capas de telefones e carregadores, uma oficina, uma agência de viagens – e uma passagem de peões com as cores do arco-íris, que é uma das primeiras memórias que tenho da minha estreia no México, há quase quatro anos. Cafezinho, nem vê-lo. Cheguei à estação dos autocarros e improvisei um banquete com um café de lata e umas bolachinhas... e quando percebi que havia um coletivo pronto a sair, reclamei o único lugar vago que restava.
Que maravilha: não tarda estou na praia.
Passou num instante, a viagem. Meia hora depois, o condutor anunciava “Puerto Morelos” e eu desci. À nossa frente estava estacionada uma combi mais pequena, perguntei se ia para a praia de Puerto Morelos e o condutor, todo stressado, mandou-me entrar. Não havia propriamente lugares, disse-lhe que era melhor ir na próxima, mas ele lá mexeu umas malas e em segundos materializou-se uma espécie de lugar junto à porta. Sentei-me de costas para os lugares da frente, virado para todos os outros passageiros. Era o único estrangeiro. Arrancámos.
Só que em vez de virar à esquerda, na estradinha que segue para a praia de Puerto Morelos, a combi seguiu em frente, pela auto-estrada, na direcção de Playa del Carmen. Claro que não dei logo-logo por isso: eu ia sentado ao contrário, reparei lá se virou ou não virou. Só que, por mero acaso, espreitei o google maps, para ter uma ideia da distância que ainda ia ter de percorrer até ao hotel, e foi então que vi que o pontinho azul a avançar numa direcção que não era a suposta.
‘Desculpe... esta combi vai para a praia de Puerto Morelos?’
Os passageiros à minha frente esbugalharam os olhos.
Não ia – ia para Playa del Carmen.
Respira fundo, Jorge. Pára a combiii!
Desci para a berma da estrada e enquanto a combi arrancava na direcção do seu destino, convoquei Ek Chuah, o deus maia protector dos viajantes, e pus-me a caminho do lugar de onde nunca devia ter saído... um quilómetro e meio atrás... debaixo de um sol pesado e duas mochilas abrasadoras... ou era ao contrário?
Seja como for: fiz o que tinha a fazer. Voltei ao ponto zero. Perguntei pela combi que vai para Puerto Morelos e indicaram-me uma esquina uns dez metros à frente. Aí esperei cinco minutos, apareceu a carrinha certa e lá fui eu para onde era suposto ir.
Três quilómetros depois, voltei a descer. O hotel ficava a quase um quilómetro, faz-se bem. Lancei-me novamente à estrada, 'ao menos tenho sombra', pensei, enquanto seguia por uma recta sem qualquer casa, rodeada de floresta e um pântano, cantarolando a nova música da Rosalia, que não me sai da cabeça.
Confesso que achei estranho não haver casas. Imaginava uma espécie de Algarve, com casas de férias e um restaurantezinho aqui e ali, mais umas lojas de souvenirs... e é certo que reservara um hotel que não ficava na rua principal, para evitar o barulho de bares e afins... mas isto era mesmo remoto.
Ao que decidi espreitar o google maps outra vez.
E foda-se!, desculpa-me lá o franciú mas é mesmo assim. Estava a ir na direcção do tal “ponto zero” outra vez! Ou seja: estava a fazer de volta o mesmo caminho que acabara de fazer na combi. Apetecia-me gritar de desespero, chamar nomes ao Universo, rir-me de mim próprio às gargalhadas. Belo alinhamento astral que devo ter hoje... a sério!
Voltei para trás... outra vez... já a pingar, com a t-shirt colada às costas e a mochila colada à t-shirt... e eis que vejo uma pequena placa nas árvores...
(Agora com zoom, caso não tenhas visto bem à primeira.)
Com todo o respeto, acelerei o passo. Crocodilos? E o pântano ali mesmo ao lado da berma, nem a dois metros. O que seria, ser motivo de notícia nos telejornais mexicanos de logo à noite. Calma, Jorge, nem sequer é um sinal oficial, isto é alguém a pregar uma partida, deve mesmo haver crocodilos aqui, deve...
Oops... dúvidas houvesse!
Mas sobrevivi, como já deves ter percebido pelo facto de estar a escrever esta crónica. E continuei pela rua certa, finalmente; e agora sim, entre casinhas catitas, bares com turistas, restaurantes internacionais e um cenário muito mais a ver com a tal expectativa. Cheguei ao hotel e era uma simpatia, o quarto não estava pronto mas cheguei, é o que interessa, e como havia piscina no terraço foi apara aí que fui, enquanto esperava que limpassem o quarto. Estava com fome e dor de cabeça, mas não queria sair sem ter o quarto pronto. Dei uns mergulhos na piscina, estendi-me na espreguiçadeira, passei pelas brasas e, ao acordar, a crónica saiu-me de rajada, que sensação boa, adoro quando assim é. Já tinha saudades de escrever no blog. Isto é para manter. É para continuar. De preferência, sem ter de caminhar quatro quilómetros ao sol com as mochilas em cima.
‘Señor Jorge... su habitacion está lista.’
Agora sim: cheguei a Puerto Morelos.
Ah: e afinal o Mercúrio Retrógado até já começou... tu queres ver??



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